“DIANTE DO INSUPORTÁVEL”
Por François Jullien (*)
Um rei duvidava de sua capacidade de fazer bem aos seus súditos. Para persuadi-lo disto, um sábio lembrou-lhe uma anedota a este respeito. Enquanto presidia a sessão na sala de audiências, este rei teria visto passar, ao pé dos degraus, um boi que estava sendo arrastado para o sacrifício. Não podendo suportar o ar amedrontado do animal, semelhante ao de um inocente que estivesse sendo conduzido ao suplício, ordena que o soltem. “Deveremos renunciar ao sacrifício?”, perguntam então os oficiais. “Impossível”, responde o rei, “vocês só têm que trocar o boi por um carneiro.”
Eis o que basta para provar, conclui o sábio, que esse príncipe é capaz de exercer a realeza. No entanto, a anedota contada parece, num primeiro momento, voltar-se contra ele: ao propor a substituição do boi por um carneiro, o rei se viu acusado de avareza; ele próprio, ao mesmo tempo em que se defendia dessa acusação, reconhece sua inconseqüência. Pois por que preferir um carneiro a um boi? O carneiro não era tão inocente quanto o segundo?
Caberá ao sábio esclarecer o que se passou na consciência do príncipe, que nem os outros, nem o próprio príncipe puderam perceber: se este último propôs, de maneira irrefletida, que se substituísse o boi pelo carneiro, é porque ele havia ‘visto’ o ar amedrontado do boi, e não tinha ‘visto’ o carneiro. Ele foi, pessoalmente, testemunha do terror de um: este terror surgiu inopinadamente sob seus olhos, e ele não pôde pensar em se proteger dele; enquanto o destino do outro animal permaneceu para ele apenas como uma idéia. Anônima, abstrata, e consequentemente sem efeito. Não aconteceu o face-a-face da presença – o olhar aberto sobre o terror do outro, e que depois não pode se fechar.
É por isto que o sacrifício do carneiro não poderia perturbar o príncipe; ele o situou de antemão na ordem das coisas. Ao passo que ver bastou para emocioná-lo, e sua lógica interior ficou por causa disso abalada. Por esta razão, sob a inconseqüência da sua conduta, da qual o príncipe crê que deve se envergonhar, manifesta-se de fato aquilo que faz o seu mérito: o príncipe não ‘suportou ver sofrer’, não pôde assistir com indiferença ao destino do outro – mesmo sendo o outro um animal. E esta reação imediata diante do insuportável bastaria para provar sua inclinação virtuosa.
A anedota é contada por Mêncio, filósofo chinês do século IV antes de nossa era. Este autor prossegue o episódio fazendo uma generalização: “O homem de bem, em relação aos animais, se ele os viu vivos, não pode suportá-los vê-los morrer; se escutou seus gritos, não pode suportar comer sua carne.”
“Para todo homem”, diz Mêncio, “existe alguma coisa que ele não pode suportar que aconteça com os outros”. Isto significa que, para todo homem, há alguma coisa que, no seio da infelicidade do outro, não poderia deixa-lo indiferente e suscita uma reação. Esta não-indiferença significa que ele não conseguiria permanecer tranquilo, ‘à vontade’, ‘em repouso’, diante de tudo o que acontece de mau aos outros (cf. a noção de ‘desconforto’ em Confúcio). (…) Do mesmo modo, para todo homem há alguma coisa ‘que ele não faz’, isto é, que ele não aceitaria fazer.
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Há o “outro” e há o “eu” – dois indivíduos distintos. A questão inevitável é: o que é que permite ser sensível, em mim mesmo, ao que acontece com os outros, fora de mim, que faz com que eu me sinta tocado por eles? Um parágrafo do Mencius orienta-nos neste sentido (VII, A, 4): Mêncio diz que “todos os existentes encontram-se implicados em mim. Se me volto para mim mesmo e percebo que isto é verdadeiramente assim, não há alegria maior. Que eu me esforce para desenvolver esta consciência dos outros em minha conduta: para atingir o humano, não há nada mais próximo.” (…) O caminho para atingir o “humano” é: devo apenas me esforçar para desenvolver, em minha conduta, a consciência que tomo daquilo que afeta o outro. (…) O fato de que todos os existentes sejam considerados “implicados” em mim significa simplesmente – mas isto é imenso -que me encontro em relação radical com eles (ou seja, que se prende à raiz de meu ser…).
(…) A moral consistirá simplesmente em desenvolver por meio de minha conduta e tornar explícita em minha existência a integração que está no princípio da vida; mostrar-se humano, como se deve ser, é tornar efetiva em torno de mim esta sensibilidade aos outros – que é virtual em mim. (…) Mostrar-se humano é tirar sua consciência do entorpecimento em relação aos outros, ser receptivo ao que lhes acontece, sentir reforçado o seu laço vital com eles. Se o homem não se mostra mais humano, é porque sua natureza ficou entorpecida, sua consciência se paralisou. (…) Cada consciência está continuamente em relação sensível com as outras, salvo quando ela se enrijece. Assim, não há por que se perguntar de que modo, na reação de piedade, pode apagar-se repentinamente a ‘barreira’ entre o eu e o outro. Pois tal barreira só é estabelecida de início por nossa construção individualista… Em outras palavras, o indivíduo existe, mas não é passível de ser isolado. (…) Ser humano é promover esta dimensão transindividual própria da existência; ser desumano é romper com ela.
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(FRANÇOIS JULLIEN é um filósofo e sinólogo francês nascido em 1951, professor da Universidade de Paris VII e autor de muitos livros sobre ética e sabedoria oriental, entre eles “Fundar a Moral”, da Ed. Discurso Editorial, de onde extraímos o texto acima.)
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=vPtrekRyTMA]“Earthlings – Terráqueos”
(Filme completo e legendado em português)
Publicado em: 12/01/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Sim!
a grande verdade na lei da fisica esta dentro de cada ser humano buscai e achareis –
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Rafael Lauro
Comentou em 27/01/13